Você não tem medo de morrer? Defensores da Amazônia enfrentam ameaças de morte e negligência do Estado no Brasil
A Paraíba é considerada o estado com maior índice de violência, segundo defensores dos direitos humanos; iniciativas de proteção apresentam falhas inter…

Neidinha Suruí, ativista dos direitos indígenas e ambientalista, gostaria de viver em uma casa sem portas. Contudo, ameaças constantes a obrigaram a viver atrás de muros altos, cercas elétricas e câmeras de vigilância.
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Ela diz: “Minha casa se tornou uma prisão”. Neidinha é uma das 1.468 pessoas atualmente monitoradas pelo Programa para a Proteção de Defensores de Direitos Humanos, Jornalistas e Ambientalistas do Brasil (PPDDH), do Ministério dos Direitos Humanos. O programa, lançado há 20 anos, visa oferecer segurança e apoio a pessoas sob ameaça. “Eu fui criada sob um tapiri – um abrigo aberto, sem paredes. Eu nunca gostei de portas fechadas”, ela recorda.
Em 20 anos, pelo menos 21 pessoas inscritas no programa foram assassinadas. Sete estão atualmente sob escolta armada nos estados do Roraima, Pará e Bahia. Segundo o ministério, mais de 70% dos inscritos trabalham em áreas rurais e muitos são líderes ambientais.
Neidinha, que dedica mais de cinquenta anos a lutar pela demarcação e proteção de terras indígenas na Amazônia em Rondônia, está entre eles. O estado registrou 29 assassinatos em conflitos de terra entre 2021 e 2024, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“Nós, que defendemos, somos um bando de loucos e malucos”, ela diz. “Mas somos os loucos bons – lutamos para que todos possam ter ar limpo para respirar, clima estável e agricultura produtiva.”
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Legado de ameaças e assassinatos.
Em 1992, Neidinha co-fundou a Associação de Defesa Ethno-Ambiental Kanindé, que apoia mais de 50 povos indígenas, incluindo os Uru-eu-wau-wau. Esse grupo enfrenta invasões de terras frequentes e violência grave. Em 2021, o ativista Ari Uru-eu-wau-wau, que monitorava invasões de terras, foi assassinado na região.
“Defensores ambientais morreram protegendo a Amazônia”, ela afirma. “Perdemos Ari, perdemos Irmã Dorothy, Chico Mendes, Paulino Guajajara…”
A lista é extensa. Inclui Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, mortos em 2022 na região de Javari Valley; o ativista José Gomes (conhecido como Zé do Lago), assassinado com sua esposa Márcia e neta Joane em Pará; os 10 trabalhadores desempregados massacrados em Pau DâArco em 2017; e o único testemunha desse massacre, Fernando Araújo dos Santos, assassinado em 2021.
Segundo a Global Witness, o Brasil é o segundo país mais perigoso para defensores do meio ambiente, atrás da Colômbia. Entre 2021 e 2024, o CPT registrou 126 assassinatos em conflitos rurais.
Eles bloquearam nosso carro e abriram fogo.
Neidinha recorda seu primeiro ataque grave em 1996. Ao ajudar a realocar uma comunidade indígena semi-escravizada em Alto Jamari, ela e uma colega foram emboscadas por homens armados. “Eles bloquearam nosso carro e abriram fogo. Conseguimos escapar acelerando.”
Trinta anos depois, as ameaças continuam. Homens armados invadiram sua casa, apontando armas para sua filha, a líder indígena Txai Suruí. Ela não conta mais as ligações anônimas e avisos velados em locais públicos.
Você vai ao banco e alguém que nunca viu toca no seu ombro e diz: “Você fala muito. Não tem medo de morrer?”
Defensores rurais enfrentam violência diária.
Muitos outros, fora dos programas oficiais de proteção, enfrentam ameaças: ambientalistas, povos indígenas, quilombolas, trabalhadores sem-terra, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais.
Um relatório recente da Terra de Direitos e Justiça Global registrou 486 atos de violência em 318 incidentes entre 2023 e 2024. Cerca de 80% desses atos visavam defensores de terra, território e meio ambiente. O estado da Bahia apresentou o maior número de mortes (10), enquanto o Pará teve o maior número de incidentes registrados no total.
Em 2024, houve uma queda no número total de casos (188), porém a ameaça permanece concentrada na Amazônia. Lá, grupos armados, madeireiros ilegais, especuladores rurais e até agentes estatais (como políticos e policiais) são responsáveis por grande parte da violência.
“Interesses econômicos poderosos estão por trás de muitas ameaças. Eles até contratam milícias para intimidar e expulsar pessoas de suas terras”, afirma Luciene Aviz, coordenadora adjunta do PPDDH na Unipop, o grupo da sociedade civil que gerencia o programa no Pará.
O programa não é suficiente para nos manter vivos.
Devido a ameaças, Neidinha se refugiou em Bahia sob proteção estadual. A experiência, ela afirma, foi psicologicamente prejudicial. “As pessoas pensam que a solução é retirar ativistas de seu território. Não é. Isso apenas os quebra”, ela diz. Dois meses depois, retornou à Amazônia. “Se você quer matar um ativista, tire-o de sua terra.”
Na Amazônia, onde a violência é mais intensa e os deslocamentos mais difíceis, os esforços de proteção se mostram insuficientes. Uma defensora, Joana*, reside em uma área remota de Almeirim, Pará, e está no programa desde 2017 após receber ameaças de morte relacionadas ao seu trabalho em reforma agrária.
“Fui assediada, perseguida, difamada”, ela afirma. Apesar de receber visitas periódicas da polícia, a grande distância das áreas urbanas frequentemente a deixa desprotegida. “Minha vida está nas mãos de Deus. Se eu dependesse do programa sozinho, eu estaria morta até agora.”
O programa estadual no Pará enfrenta dificuldades com logística e financiamento. “Às vezes, é preciso um barco e um ônibus para alcançar os defensores. A polícia nem sempre consegue ir até lá”, explica Aviz.
Ademais, Joana descobriu que seu chefe de polícia local estava próximo dos empresários que a ameaçavam. Ela precisou apresentar uma denúncia formal à agência de supervisão policial.
Para mitigar esses riscos, o programa agora designa oficiais específicos como “pontos de contato” responsáveis por cada defensor. “Estamos informando o estado: esta pessoa é sua responsabilidade”, afirma Aviz. Ninguém sob a proteção ativa do programa foi morto.
Quando a ameaça provém da polícia.
O relatório da Terra de Direitos e Justiça Global classifica os perpetradores como agentes privados ou públicos. Dentre estes últimos, os oficiais da polícia militar são os mais frequentemente relatados.
“Eu tinha medo da polícia”, diz Joana. “Você vê o que aconteceu com Chico Mendes – ele foi morto enquanto dois policiais estavam dentro de sua casa.”
Chico Mendes, o icônico seringueiro e ambientalista, foi assassinado em 1988 no estado do Acre. Seu assassino, o pecuarista Darci Alves Pereira (agora conhecido como Pastor Daniel), o atirou no peito em seu quintal. Na época, Mendes estava sob a proteção de dois policiais militares.
Nome alterado para proteger a identidade do entrevistado.
Fonte por: Brasil de Fato