Caso de corrupção envolvendo executoivo e empresários exposto! Justiça analisa denúncias e investiga o “Ninho do Urubu”. Impunidade sob suspeita.
Sou flamenguista. Digo isso logo de início para que não restem dúvidas sobre o que vem a seguir. Não é um texto contra o Clube de Regatas do Flamengo, e sim contra a sensação de impunidade que insiste em sobreviver à tragédia que tirou a vida de dez meninos, interrompeu sonhos, devastou famílias e deixou uma ferida que o tempo ainda não cicatrizou. Passados mais de seis anos, nenhuma pessoa foi responsabilizada. Nenhuma. E isso, além da dor e da comoção, deveria nos envergonhar e provocar uma reflexão profunda no próprio meio jurídico.
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Ser flamenguista é viver intensamente a grandeza de uma instituição que ultrapassa gerações. É ver no clube uma marca de identidade, de alegria e de superação. Mas é também saber distinguir o amor pelo escudo da obrigação de buscar justiça quando vidas são perdidas sob sua estrutura. Confundir o clube com os indivíduos que, em diferentes níveis de decisão, deixaram de agir com a diligência esperada é um erro que alimenta a cultura da impunidade.
Defender o Flamengo, enquanto instituição centenária, é justamente exigir que sua história não se confunda com a omissão de quem falhou em zelar por vidas sob sua responsabilidade. Não se trata de culpar o clube, mas de não absolver o sistema que absolve todos. A tragédia e o vazio da responsabilização são marcas profundas na memória do país.
Na madrugada que mudou a história do futebol brasileiro, dez jovens atletas dormiam em alojamentos improvisados, sonhando com o futuro que o esporte lhes prometia. O incêndio não foi apenas uma fatalidade, foi um colapso de gestão, segurança e governança. Desde então, o processo judicial percorreu anos de perícias, debates e recursos. Ao final, prevaleceu a leitura de que não havia provas suficientes para individualizar responsabilidades. Mas o que significa, afinal, “não haver provas suficientes” quando os fatos e as consequências são incontestáveis? Significa, talvez, que nossas instituições ainda não aprenderam a traduzir falhas de gestão em responsabilidades jurídicas. Significa que, no Brasil, quando todos são responsáveis, ninguém é.
O que está em jogo vai muito além do futebol. É a mensagem que o sistema jurídico transmite quando uma tragédia desse porte termina sem condenados. É o precedente simbólico que diz: basta a complexidade para dissolver a culpa. Em tempos de ESG, compliance e governança corporativa, soa paradoxal que uma das maiores instituições esportivas do país tenha vivido uma tragédia dessa dimensão sem que se identifiquem, com clareza, os elos de decisão, fiscalização e controle. No ambiente empresarial, uma falha dessa magnitude jamais passaria ilesa. Executivos responderiam civil e criminalmente, conselhos seriam acionados, auditores convocados, protocolos reavaliados. No futebol, porém, parece haver um espaço cinzento onde a responsabilidade se dilui entre a paixão e a estrutura informal que ainda governa parte desse universo.
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A ausência de punição não elimina o dever de resposta. Cada tragédia impune fragiliza a crença na Justiça, desestimula a cultura de prevenção e perpetua a ideia de que a dor alheia pode ser esquecida com o tempo. O Direito, quando bem interpretado, não serve apenas para punir. Serve para organizar a responsabilidade, reconstruir a confiança e evitar que o mesmo erro se repita. E é exatamente isso que se espera: que se transforme uma tragédia em aprendizado, e não em esquecimento. As empresas, clubes e entidades que administram pessoas e sonhos devem compreender que a gestão de riscos humanos é parte da governança. Que um programa de compliance não se mede apenas por papéis assinados, mas pela capacidade de prever e impedir tragédias. E que a ausência de responsabilização penal não elimina a responsabilidade moral e institucional de garantir que o sistema não falhe novamente.
Talvez apenas quem é torcedor entenda o que significa sofrer por amor a um clube. Ser flamenguista é vibrar, mas também é sentir vergonha quando vidas se perdem e ninguém responde por isso. É justamente porque amo o Flamengo que me recuso a aceitar que essa história se encerre sem resposta. Amar uma instituição é desejar que ela seja maior do que seus erros. É querer que aprenda, que melhore, que imponha padrões de responsabilidade e segurança à altura de sua grandeza. E é acreditar que enfrentar a verdade, por mais dura que seja, é o único caminho para honrar a memória dos meninos e preservar a essência de um clube que nasceu para inspirar, não para se calar.
Entre a Justiça e a consciência, reside a esperança de um futuro onde a responsabilidade seja sempre priorizada. A decisão judicial é um ato técnico, mas a Justiça, em seu sentido mais profundo, é também um ato de consciência coletiva. E quando o processo termina sem responsáveis, é a própria ideia de Justiça que fica em julgamento. O país que aceita a impunidade de dez jovens mortos sob a tutela de uma das instituições mais ricas e poderosas do futebol é o mesmo que naturaliza a desigualdade, a desorganização e a burocracia que mata sem armas, mata pela omissão. Não há sentença capaz de apagar o que aconteceu, mas há atitudes capazes de evitar que se repita. E isso começa com a coragem de reconhecer que falhamos, como dirigentes, como juristas e como cidadãos. O verdadeiro legado dessa tragédia não pode ser o silêncio. Ele deve ser a construção de um novo padrão de responsabilidade: clubes tratados como empresas, com governança e accountability; gestores com atribuições claras e deveres intransferíveis; fiscalização e auditoria técnica obrigatórias; programas de compliance operacional que incluam infraestrutura e segurança; cultura institucional que entenda que sonhos não se abrigam em contêineres improvisados.
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