José Saramago em 1997: “Não é a pornografia obscena, mas sim a fome”. Analista discute a obscenidade na cidade e a invisibilidade da miséria.
A palavra “obsceno” tem suas raízes no latim, originando-se de “ob scenam”, que se referia a tudo aquilo que não deveria ser exibido no palco teatral. Antigamente, essa palavra representava o que era considerado “inencenável”: cenas de violência extrema, atos de desordem e sofrimento intenso.
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A obscenidade, nesse contexto, residia no impacto perturbador dessas representações, que ameaçavam a ordem e a estrutura da peça teatral.
No entanto, com a transformação do palco em espaço urbano, a noção de obscenidade evoluiu. Hoje, o que é considerado obsceno não é a nudez física, mas sim a presença da fome e da pobreza nas periferias da cidade. Essa mudança de perspectiva foi notavelmente articulada por José Saramago em 1997, durante uma entrevista ao programa “Jô Soares Onze e Meia”, onde ele afirmou: “Não é a pornografia obscena, mas sim a fome”.
Saramago desloca o foco do escândalo moral, relacionado ao desejo, para a dimensão da injustiça social. A verdadeira obscenidade, segundo ele, está nos mecanismos sistêmicos que produzem e perpetuam a miséria, tratando-a como um mero acaso estatístico.
A obscenidade reside, portanto, no que é removido do campo visual.
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A paisagem urbana constrói-se sobre essa lógica. Uma violência normalizada, camuflada em números, relatórios e discursos técnicos. A estética da cidade pratica uma censura silenciosa, através de muros, calçadas seletivas e mobiliário urbano projetado para afastar a população em situação de vulnerabilidade.
A linguagem desempenha um papel crucial nesse processo, transformando a dor humana em abstrações gerenciais.
A fome, em particular, torna-se o escândalo máximo, não por sua visibilidade, mas pelo seu desaparecimento por trás de uma linguagem dissimuladora. A estatística funciona como um escudo protetor, transformando a realidade em números neutros e administráveis.
A invisibilidade, nesse contexto, é uma política deliberada. Restabelecer a visibilidade daquilo que o espaço urbano insiste em negar – o corpo faminto, o sofrimento concreto, a miséria que nos observa e interroga – é o primeiro passo para enfrentar essa realidade, conforme Saramago apontou em 1997.
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