Frei Tito representou a denúncia, o sofrimento e a lembrança da violência

Testemunhos de líderes religiosos contestaram os atrocidades do regime militar no Brasil e no mundo.

14/09/2025 7:03

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Frei Tito representou a denúncia, o sofrimento e a lembrança da violência
(Imagem de reprodução da internet).

No seu último registro audiovisual, o religioso revolucionário Frei Tito relata os detalhes da tortura que sofreu durante sua prisão sob a ditadura militar. Em uma entrevista ao documentário “Brasil: a report on torture”, filmado no Chile em 1971 por Saul Landau e Haskell Wexler, ele descreve a violência da qual foi vítima, reafirmando sua voz como instrumento de denúncia dos horrores cometidos pelo regime.

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Em certo momento da conversa, o ativista relata a tentativa de suicídio, decorrente de sessões de tortura. Questionado pelos documentaristas sobre o motivo do gesto, ele se mostra veemente: “Liguei as veias do meu braço, em uma tentativa de acabar com a tortura e possibilitar assim, uma denúncia genuína de que o Brasil não é apenas um país de samba, futebol e Pelé, mas também um grande detentor de práticas de tortura”, afirma o religioso.

Em 2022, enquanto detido, Frei Tito escreveu uma carta que se tornou mundial. O documento descrevia as técnicas de tortura vivenciadas, como choques elétricos, agressões físicas, queimaduras e abuso psicológico severo. Publicado na mídia internacional, o texto é reconhecido como um dos primeiros registros públicos dos atrocidades da ditadura militar. Nele, a experiência do religioso que se tornou mártir é explicitamente relatada, juntamente com o sofrimento infligido a outras vítimas do regime.

A Igreja não pode se calar. As evidências das torturas que carregamos em nosso corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Em um momento como este, o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo.

O historiador Régis Lopes, docente da Universidade Federal do Ceará e curador do Memorial Frei Tito, declarado em entrevista ao Brasil de Fato, ressalta que os relatos do jovem ativista forneceram ao Brasil e ao mundo a visão dos terrores vivenciados em solo nacional. Ele complementa que o documento elaborado durante sua detenção se disseminou pelas igrejas de todo o país.

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Ele relatou ter descoberto pelo menos quinze processos de investigação e espionagem envolvendo padres e indivíduos que disseminavam o relato do Frei Tito, como se fosse um folheto de cordel mimiografado. “O que as diversas versões escritas desse relato de tortura e a sua circulação entre as pessoas que sofriam a repressão comprovam? Que não há dúvida que esse relato realmente se transformou numa espécie de memória nacional”, disse ele.

Nascido em Fortaleza (CE), em 14 de setembro de 1945, Tito de Alencar Lima entrou para a vida religiosa como frade dominicano em 1967. Durante a adolescência, participou de organizações de natureza religiosa e política, incluindo a Juventude Estudantil Católica (JEC). Aluno de filosofia na Universidade de São Paulo (USP), ele se juntou à União Nacional dos Estudantes (UNE) e colaborou na escolha do local para o emblemático Congresso da UNE, ocorrido em Ibiúna, em 1968.

A polícia invadiu o encontro e Frei Tito foi preso pela primeira vez, acompanhado por outros 600 estudantes. Após ser fichado e liberado, passou a ser investigado de perto pelas autoridades de repressão. A segunda e mais severa prisão ocorreu em novembro de 1969, quando foi detido com companheiros dominicanos, entre eles Frei Betto e Fernando de Brito, no próprio convento onde residiam.

Foram acusados de colaborar com a Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella. Os frades não participaram de ações armadas, mas foram acusados de auxiliar em fugas e acolher feridos. Na tentativa de forçar Frei Tito a delatar colegas, a equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), aplicou a ele um processo de destruição física e mental, além de uma campanha difamatória que envolveu os principais jornais do país.

“O que ele passou, viveu e sofreu não foi apenas um sofrimento individual”, aponta o professor Régis Lopes. “A figura do Frei Tito teve essa repercussão como experiência vivida, mas também como símbolo. Por exemplo, para a igreja de esquerda ele foi um mártir, ele sofreu martírio. E o martírio por uma causa muito justa e cristã, que é a igualdade entre todas as pessoas.”

Em janeiro de 1971, Frei Tito foi libertado. Ele pertencia a um grupo de 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, capturado pela Vanguarda Popular Revolucionária, liderada por Carlos Lamarca. O religioso passou pelo Chile e pela Itália, porém, foi na França que obteve apoio da comunidade dominicana e estabeleceu residência. Contudo, o exílio não proporcionou tranquilidade.

As consequências das torturas impactaram significativamente a psique do ativista, que desenvolveu crises de pânico e ansiedade de maior intensidade. Apesar do sofrimento mental, ele persistiu em denunciar a tortura, realizando entrevistas, participando de reuniões e retomando os estudos e o trabalho humanitário.

Frei Tito descreveu a ditadura militar como um Estado policial, fascista, conservador e repressivo. “A ordem é o poder estabelecido. Existe um clima de medo no povo. O Brasil é um país angustiado”. Os relatos do religioso foram acompanhados pela imprensa internacional, que contribuíram para o registro dos horrores da ditadura.

Em 10 de agosto de 1974, aos 28 anos, Tito de Alencar Lima foi encontrado morto nos arredores de Lyon, na França. Ele se enforcou em uma árvore, devido às lembranças sombrias e ao sofrimento emocional causado pela tortura. Em seu quarto, confrades localizaram uma frase simbólica, escrita por Tito em uma Bíblia: “É preferível morrer do que perder a vida”.

O pesquisador Regis Lopes destaca que a percepção da relevância do próprio relato como instrumento para o bem comum caracterizou toda a atuação revolucionária do religioso. “A força do Frei Tito está presente, por exemplo, neste momento. Estudar a história não é examinar o passado, é compreender como ele se manifesta no presente. O Frei Tito inspira afeto, oferece força, esperança e o desejo de viver de forma diferente.”

Escute a entrevista completa no player de áudio disponível abaixo do título desta notícia.

Fonte por: Brasil de Fato

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