Fazenda Pau D’Arco: local de massacre poderá se tornar símbolo de luta por direitos na Amazônia

A Justiça federal considera marco histórico a decisão de desapropriar a propriedade rural onde se desenvolveram os fatos.

04/09/2025 16:19

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Fazenda Pau D’Arco: local de massacre poderá se tornar símbolo de luta por direitos na Amazônia
(Imagem de reprodução da internet).

A propriedade rural, antes símbolo de violência e receio, pode se transformar em um marco histórico de justiça agrária na Amazônia. O momento decisivo ocorreu na semana passada, em 26 de agosto, quando a Justiça Federal determinou que o governo federal não necessita da autorização do proprietário para subdividir a terra entre 200 famílias que ali residem e trabalham há oito anos.

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O imóvel em questão é a fazenda Santa Lúcia, no sudeste do Pará, local onde ocorreu o segundo maior massacre rural da história do país, a chacina de Pau D’Arco. Trata-se do primeiro caso na Amazônia de “desapropriação rural por interesse social”, modalidade em que o proprietário não pode se recusar a vender a terra para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). “O peso simbólico e político é muito grande”, afirma José Batista, advogado e especialista em disputas rurais da CPT (Comissão Pastoral da Terra). “A decisão abre uma possibilidade jurídica de solução para dezenas de conflitos na região, onde centenas de famílias estão ameaçadas de despejo”.

A decisão judicial considerou válido um decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em março deste ano, que declarou a Fazenda Santa Lúcia como de interesse social, para fins de desapropriação.

O histórico de violência foi peça central do argumento do governo para classificar a área como de interesse social, afirma Claudia Dadico, diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Incra. “O fundamento não é só da desconcentração fundiária, mas sobretudo dos conflitos sociais”.

Em 2017, policiais civis e militares do Pará executaram, torturaram e assassinaram dez trabalhadores sem-terra que estavam ocupando a área. Essa é a conclusão do inquérito assinado pela Polícia Federal com base no relato de testemunhas, delação de dois policiais, perícia balística nos corpos e a maior reconstituição já realizada pela instituição.

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Apesar da abundância de provas, os policiais acusados pela chacina permanecem em liberdade e ativos, atuando na mesma área onde residem as testemunhas. Em 2021, Fernando dos Santos Araújo, principal testemunha do caso, foi assassinado com um tiro na nuca. Dias antes, ele relatou à Repórter Brasil ter recebido ameaças e recados para mudar seu depoimento.

A narrativa de como Fernando resistiu ao massacre, tornou-se testemunha e foi assassinado posteriormente é o foco principal de “Pau D’arco”, documentário da Reporter Brasil e Amana Cine em coprodução com a RioFilme. O filme foi exibido em abril e será lançado ao público em 2026 (saiba mais sobre o filme).

Barreira (quase) intransponível

Em 2017, a chacina mobilizou instituições públicas, organizações do terceiro setor e a imprensa. Durante as investigações, que revelaram detalhes sobre como as vítimas foram sequestradas e torturadas por policiais antes de falecer, o Incra começou a desenvolver um plano de ação para converter o local em um assentamento.

Um obstáculo aparentava ser intransponível: a vontade do proprietário. Apesar da fazenda estar ocupada e inacessível, o dono negava as ofertas e tentativas de aquisição provenientes do governo.

O contrário do que se acredita sobre um pecuarista, o proprietário da Santa Lúcia é um jovem que se apresenta como ator nas redes sociais. Residindo em uma cidade distante da Amazônia, ele recebeu em 2013 a área de seu pai. Contatado pela reportagem, seu advogado declarou não ter intenção de comentar a decisão judicial.

Apesar de recusar as propostas do Incra, corria um rumor de que ele havia vendido a propriedade a um comprador particular. O negócio foi conduzido de forma não oficial, devido à ocupação do terreno.

A suposta compradora apresentou uma objeção ao Supremo Tribunal Federal, alegando ser a legítima proprietária. Contudo, seu pedido foi rejeitado após a Advocacia Geral da União comprovar que o contrato de compra e venda não havia sido registrado em cartório.

Meio século depois.

Para solucionar o conflito na fazenda Santa Lúcia, o governo Lula retomou uma lei aprovada pelo então presidente João Goulart em 1962. A Lei 4.132 trata da “desapropriação por interesse social”, modalidade utilizada no decreto presidencial de março deste ano que declarou o imóvel como de interesse social – e que foi reconhecida pela Justiça na semana passada.

A lei é simbólica porque essa lei fazia parte das Reformas de Base [propostas por João Goulart], que serviram de esteio ao golpe militar de 1964, afirma José Vargas, advogado que defende sem-terra da Santa Lúcia desde a primeira ocupação, quatro anos antes da chacina. “E também é esperançoso pensar que estamos conseguindo retomar as ideias daquele momento, mesmo que 50 anos depois”.

Após o golpe, a ditadura militar reprimiu violentamente as reivindicações pela reforma agrária, fomentando perseguições, prisões e “desaparecimentos” de líderes e sindicatos rurais. Contudo, não revogou a legislação pertinente.

A decisão histórica do Tribunal de Justiça do Pará em favor do Incra no caso da fazenda Santa Lúcia é consequência da política adotada pelo governo do presidente Lula de levar a paz ao campo, afirma o ministro do Desenvolvimento Agrário Paulo Teixeira, que também assina o decreto. “Que os fatos de violência contra trabalhadores rurais, como ocorrido em Pau D’Arco, nunca mais aconteçam”.

Muitas mãos

A solução apresentada pelo governo e a mais recente decisão da Justiça representam o resultado de um extenso processo de reconstrução e resistência que mobiliza diversos atores. Em junho de 2017, semanas após o massacre, dezenas de trabalhadores rurais sem-terra retomaram a propriedade – entre eles, familiares e amigos das vítimas.

O local recebeu o nome popular de Projeto de Assentamento Jane Júlia, em homenagem à líder do grupo, que faleceu na chacina juntamente com seu marido e mais cinco membros da família. O grupo que ocupa a área não possui ligação com movimentos sociais.

Desde o início, a reocupação enfrentava sérias ameaças, devido aos cortiços amontoados e à vigilância noturna. Uma lista anônima circulava com os nomes das próximas vítimas. Um mês depois, o novo líder do grupo foi executado com uma arma com silenciador. Outro nome que constava na lista é o do advogado José Vargas, que precisou retirar sua família do local após os cães de sua casa terem sido mortos.

A Comissão Pastoral da Terra representou um agente relevante que acompanhou de perto a reocupação, promovendo uma peregrinação anual no dia do massacre. “Sabemos que o ataque foi um aviso para intimidar todos os desempregados do interior da região”, declara Andrêia Silvério, que acompanhou o caso como advogada da CPT. Há dois anos, junto com Vargas, ela ajudou a fundar um coletivo de advogados, o coletivo Veredas, que defende sem-terra e indígenas no sul do Pará. “Agora compreendemos que a designação da propriedade para a reforma agrária é uma mensagem contra a violência, um ato de reparação histórica”, afirma.

“Mais de 30% dos conflitos agrários do país se concentram aqui e este é o caso mais emblemático”, afirma Andreyk Maia, o superintendente do Incra em Marabá. Ele ressalta que os diversos atores envolvidos nas 200 áreas ocupadas em sua região olham para Pau D’arco como uma referência.

Há oito anos, aproximadamente 200 famílias vivem em casas com telhados de palha e pisos de terra batida. Sem assistência do governo, elas cultivam diversas espécies de alimentos, extraindo-os do solo com suas próprias mãos para garantir sua subsistência ou para vendê-los em feiras. Atualmente, o local não possui energia elétrica. As residências que utilizaram fios improvisados correm o risco de perder tudo em incêndios, como já ocorreu diversas vezes.

A decisão judicial reforça que somente a luta coletiva funciona para o acesso à terra, não existe política pública sem ela. O advogado José Vargas afirma: “Mas ela também mostra que o Estado é sim capaz de cumprir seu papel e que a violência é incapaz de derrotar a resistência organizada dos trabalhadores”.

Fonte por: Brasil de Fato

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