A sociedade deve comunicar aos parlamentares que eles deverão lidar com a realidade da esquerda.
A Professora Angela (PSOL), vereadora de Curitiba, enfrenta risco de perda do mandato. A situação ocorreu após uma audiência pública realizada durante seu mandato na Câmara, em 5 de agosto, na qual a vereadora convidou ativistas para discutir a política de drogas na cidade. No local, foi oferecido um material informativo sobre redução de danos, similar ao adotado pelo SUS. O evento foi interpretado como defesa de drogas pela oposição, que protocolou um pedido de cassação.
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Angela Alves Machado, a Professora Angela, é a primeira vereadora do PSOL eleita em Curitiba, cidade em que o PSOL sempre enfrentou grandes dificuldades eleitorais. Evitaria listar as razões pelas quais sempre foi muito difícil estabelecer o PSOL em Curitiba, pois muitas delas são consideravelmente mais endêmicas do que boa parte das análises políticas costumam valorar.
A razão que eu gostaria de abordar aqui é a que provavelmente o leitor automaticamente pensou: Curitiba é uma cidade conservadora. Esse axioma é tão eficiente que tem o poder de, constantemente, nos acionar, em uma política frequente de tornar o verbo carne. Assim, vamos, gradualmente, aceitando que essa é a cidade em que vivemos e que sobreviveremos nela se aprendermos a domesticar nossos desejos de transformação social em nome de prerrogativas mínimas.
É muito comum que analistas políticos, que chamei de Senhores Pragmáticos nesse artigo de opinião, resumam suas estratégias a diferentes adaptações da seguinte formulação: “A política é o reino do ‘como é’, não do ‘como deveria ser’. Certamente há muito valor nessa frase: não podemos deixar que nossas crenças façam com que analisemos a conjuntura e as possibilidades de intervenção de maneira ilusória, ingênua, desconsiderando o real estado das coisas. Ao mesmo tempo, essa frase desconsidera a própria natureza da política, que é a constituição de campos estratégicos para a disputa de interesses. Ou seja, temos sim de avaliar o estado das coisas da maneira mais sóbria possível, mas essas leituras devem ter como horizonte certo “como deveria ser”, a constituição do que nós queremos que aconteça.
O reforço contínuo de ultimatos molda a realidade, paradoxalmente. O verbo se concretiza, conforme já discutimos. A convicção de que Curitiba é conservadora e que este é seu destino, ignorando as lutas estabelecidas na cidade, a torna cada vez mais conservadora e estéril para novos conflitos.
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A bancada se utiliza dessa estratégia como principal instrumento de intervenção. Da Costa do Perdeu Piá (União), um vereador que articula pela cassação de Angela, aparece na televisão, em propaganda de seu partido, dizendo “vagabundo aqui não se cria”, gesticulando com a mão um gesto que imita o “L”, característico dos apoiadores do presidente Lula, que, ao longo de sua fala, assume uma postura de dedo indicador em sinal de reprovação. A mensagem é clara: aqui, em Curitiba, diferente de outros lugares, não há Lula, não há esquerda, não há PSOL, só tem PT se ele for mais insosso que água de salsicha, não há feminismo, não há marcha da maconha, não há negros, não há mimimi; no restante do Brasil, ali, pode até ter, mas aqui, não.
A estratégia de intimidação por meio de pedidos de cassação se consolidou assim. Foi o que ocorreu com Renato Freitas na Câmara de Vereadores, em um episódio lamentável que mobilizou o país. Foi assim que tentaram cassá-lo novamente, ao afirmar que o governador possui “mãos sujas de sangue”, um recurso retórico empregado por 9 de cada 10 parlamentares da oposição em nível global. Foi assim que já tentaram cassar a própria Angela por utilizar uma bandeira palestina, denunciando o genocídio em curso.
É assim que eles operam. Em uma espécie de manipulação emocional, eles sequestram a nossa imaginação política ao nos fazerem crer que somos nós os culpados desses ataques, nós os radicais, que exigimos demais, que fazemos muito, que não nos comportamos. Deveríamos ser mais quietos. Deveríamos ser mais estratégicos. Afinal, Curitiba “é” assim, ainda que não “deveria ser”.
Perdemos assim. Somos poucos, ficamos menores e cada vez mais incapazes de incomodá-los. E é por isso que a defesa do mandato da Angela é tão importante. É preciso que a sociedade informe aos parlamentares que eles precisam, sim, conviver com a existência da esquerda minoritária. Que se eles podem propor um Dia Do Conservador em homenagem ao Olavo de Carvalho, Angela pode fazer uma atividade sobre drogas com ativistas para propor um projeto de sociedade que ela defende e foi eleita para defender. Cada um que use suas armas para construir a realidade que deseja. Assim é a política.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente reflete a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Mateus de Albuquerque é doutor em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Representação e Legitimidade Democrática (INCT/ReDem).
Fonte por: Brasil de Fato
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