Distopia, estranhamento e redenção em ‘O Último Azul’
Entre os temas que o cineasta Gabriel Mascaro frequentemente aborda, a distopia ocupa um papel relevante.

A distopia ocupa um papel relevante entre os temas abordados pelo cineasta Gabriel Mascaro em suas obras, manifestando-se através de contradições e reviravoltas que ele insere nas cenas, impulsionadas por uma atmosfera de estranhamento constante.
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Mascaro compreende que no cinema, o que se vê é mais importante do que o que se explica (por isso seu cinema é genuinamente brasileiro). No limite do necessário para ser compreendido, a explicação se manifesta nas imagens que elas mesmas revelam.
Na série documental “Um Lugar ao Sol”, lançada em 2009, moradores de diferentes regiões do Brasil apresentavam uma visão de mundo idealizada para exaltar seus locais de moradia. Suas contradições, marcadas por desinformação e preconceito, provocavam estranhamento (inclusive em algumas delas) e evidenciando a realidade distorcida em que viviam.
Do documentário à ficção.
Os filmes seguintes, “Avenida Brasília Formosa” (2010) e “Doméstica” (2012), exploraram a mesma ideia de transformar o dia a dia em imagem, buscando provocar a surpresa e o estranhamento da própria realidade. Essa sensação foi o que buscou nas ficções que se seguiram. “Ventos de Agosto” (2014) ainda é um híbrido com a trama servindo como desculpa para a câmera ficar aberta e garantir o estranhamento, enquanto “Boi Neon” (2015) aposta na estranha contradição de um vaqueiro-estilista.
Em Divino Amor (2019), Mascaro organiza espaço e lugar para apresentar a distopia em si na narrativa, onde o Estado brasileiro se tornou oficialmente (“terrivelmente!”) evangélico.
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O último
Este currículo cinematográfico terminará em “O Último Azul” (2025). Neste filme, parece que Mascaro está intencionalmente determinado a construir uma narrativa sintética para confirmar as impossibilidades apresentadas anteriormente, como referência e para superá-las, agora, como um direito. Assim, metade do filme é distópica; a outra metade, a superação dessa distopia. O resultado é uma saída redentora do que não se adequa, para além das opressões externas impostas, inclusive e principalmente, uma saída de suas próprias convicções.
O diretor estabelece uma contradição entre distopia e sua superação, definindo espaço, protagonismo e ação. A narrativa apresenta um país onde “o governo afirma valorizar a família, mas envia os idosos para uma colônia”, e a protagonista é uma senhora que assume um papel de redenção através de uma jornada representativa. Surpreendentemente, o tema não é o etarismo, mas sim um pano de fundo para simbolizar cinematograficamente grupos subjugados e perseguidos por uma sociedade idealizada. A protagonista, uma mulher pobre, explorada e alvo de perseguição por um governo demagogo, em um país extraordinário, personifica a jornada de todas as pessoas na mesma situação, culminando em uma redenção – este novo elemento transcendental, como um caracol azul.
O caminho correto seria trilhado em três partes, igualmente carregadas de paradoxos, reviravoltas e incertezas. Na primeira, ela, que não expressava afeto, desenvolve sensibilidade por ele, através de um homem tosco e em estado terminal, vivenciado como um herói que, surpreendentemente, perdoa a infidelidade para concretizar seu amor. Na segunda, ela, que não se envolvia em apostas, aprende a se entregar à sedução do jogo, com um charlatão que, paradoxalmente, parecia ser quem cumpriria seu sonho de alçar voo. No terceiro, ela se apaixona, como a improvável, porém já não estranha, metáfora da libertação.
Por fim, cabe ao estranhamento que se esvai à torcida de uma mulher que, sem amor, se entregou a amar; sem ponderar, arriscou tudo e, como último tom de azul, renunciou a um desejo final de voar de avião para obter a liberdade no controle de um barco em um rio de um país contraditório e redentoramente belo.
André D. Pares é jornalista e professor de Filosofia.
Este texto é uma opinião e não reflete a coluna editorial do Brasil do Fato.
Fonte por: Brasil de Fato