O Supremo Tribunal Federal (STF) tem acompanhado, desde o início do mês, o julgamento de Jair Bolsonaro e de outras sete pessoas, entre políticos e militares, acusadas de tentar a abolição violenta da democracia.
Nesse cenário, grupos de esquerda defendem o lema “sem anistia”, em apoio à responsabilização dos participantes e na cobrança de condenação e encarceramento do setor golpista.
Pesquisadores e ativistas do movimento abolicionista penal são chamados a confrontar uma contradição: apoiar as demandas por encarceramento dessas pessoas, ao mesmo tempo em que seu principal objetivo é o fim de todos os presídios.
O Brasil possui a terceira maior população carcerária global e, ao longo da história, prisões e outros locais de restrição à liberdade – incluindo hospitais psiquiátricos, regimes fechados, instituições socioeducativas e centros de internação – representam espaços de ocorrência de múltiplas formas de violência.
As consequências da prisão afetam diretamente familiares, sobreviventes do encarceramento e profissionais que atuam no sistema prisional.
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A partir daí, desloca-se para a esquerda a discussão sobre a viabilidade de empregar o sistema penal como instrumento na busca por um mundo mais justo. A magistrada aposentada Maria Lúcia Karam, em seu texto “Pela abolição do sistema penal”, declara que:
O sacrifício representa a detenção de um ou outro dos membros das classes dominantes ou de um ou outro que se coloque a seu serviço não altera o perfil global daqueles que são selecionados pelo sistema penal. A eventual imposição da pena serve tão somente para legitimar o sistema penal e melhor ocultar, sem maiores perdas, seu papel na manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação da formação social na qual surge.
Não tramita em julgamento no STF, genocídio contra povos originários, discursos de ódio misóginos e homofóbicos, avanço da extrema-direita e desmonte de políticas públicas, destruição do meio ambiente, reforma da previdência, exaltação de ditadores e a forma absolutamente irresponsável com que o governo Bolsonaro conduziu a pandemia de covid-19, com milhares de mortes evitáveis devido ao atraso intencional na aquisição de vacinas, ao ataque à ciência e à disseminação de notícias falsas.
A ausência de estratégias para lidar com essas violências torna a perspectiva de uma condenação de um grupo de políticos e militares que planeja um golpe de Estado um resultado positivo. Quando afirmamos que os abolicionistas do sistema penal devem encarar uma contradição, compreendemos que ela faz parte da luta, visto que, se a realidade é contraditória, também são as formas de agir sobre ela.
As utopias orientam as lutas, contudo, é preciso entender as possibilidades reais do dia a dia e fazer projeções a partir delas.
Considerando a insuficiência da condenação dos envolvidos, não podemos nos opor a ela. Contudo, ressaltamos que as solicitações de “isenção de punição” não devem representar confiança nas instituições e no sistema jurídico. Devem, por outro lado, indicar uma oportunidade de mobilização decorrente da insatisfação pública em face das violências citadas, independentemente do foco deste julgamento pelo STF.
A defesa da abolição penal, ao invocar a ausência de anistias, demonstra que a busca pelo fim das prisões não se baseia em princípios morais, e não em oposição abstrata a qualquer tipo de encarceramento, distante da realidade concreta.
Adotamos a perspectiva do abolicionismo penal de Ruth Gilmore, que defende que a abolição, em vez de buscar formas de extinguir o sistema prisional, envolve compreender como as pessoas operam, construindo suas vidas a partir de uma abordagem abolicionista.
Nesse sentido, percorreremos um caminho abolicionista penal que se concentre nas oportunidades reais para um futuro radicalmente superior. Inclui a viabilidade de promover um churrasco (que pode ser vegano!) e a prisão de Bolsonaro, ao mesmo tempo em que se expande o alcance da luta pelo futuro.
Este texto é um artigo de opinião, a perspectiva dos autores não representa a orientação editorial do jornal.
Fonte por: Brasil de Fato