Amazônia e Josué de Castro: a fome na floresta hoje
A Amazônia sem segurança alimentar para seus habitantes não existirá.

Na data de 5 de setembro comemoramos o Dia da Amazônia e também os 117 anos do nascimento de Juscelino Kubitschek. Duas datas que se cruzam e evidenciam a relevância de uma crítica urgente: a insegurança alimentar persiste de forma significativa na região amazônica. Juscelino, médico e geógrafo, nos mostrou que a fome não é um destino natural, mas sim consequência de decisões políticas e sociais. Ademais, é fruto da ação humana, “feito pelo homem”.
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Em 1946, Josué demonstrou que a Amazônia era uma das áreas de fome crônica no Brasil, juntamente com a região canavieira da Mata Nordestina. O mapa que ele elaborou é reconhecido como o primeiro mapa da fome amplamente divulgado no país. Segundo ele, essas regiões apresentavam as piores condições de alimentação, com dietas pobres em variedade e nutrientes, apesar da aparência de abundância.
Décadas depois, os dados da EBIA/IBGE de 2024 corroboram o diagnóstico de Josué. O estudo recentemente divulgado pela rede colaborativa Uma Conscientização pela Amazônia revela que aproximadamente 40% da população da Amazônia Legal vive atualmente em um grau de insegurança alimentar moderada ou grave, o que implica passarem fome segundo a FAO. Essa proporção é superior à média nacional e até maior do que a fome da região Nordeste, como tanto incomodava o pernambucano Josué.
Em estados como o Amazonas e o Pará, os mais populosos da região Amazônica, a situação é ainda mais crítica, desconstruindo o imaginário popular de que a fome grave estaria restrita ao Sertão do Nordeste, como muitos ainda acreditam.
O valor do estudo Amazônias reside não apenas no diagnóstico, mas nas propostas de políticas que apresenta: descentralizar estoques de alimentos, fortalecer a agricultura familiar ribeirinha, indígena e quilombola, integrar abastecimento urbano e produção local, adaptar programas como PAA e PNAE às especificidades da região. São medidas urgentes e viáveis, que exigem apenas uma decisão política de implementar, além de investimentos públicos consistentes.
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As secas de 2023/24 intensificaram o problema. Com os rios secos, as embarcações param de circular e comunidades inteiras ficam isoladas. Alimentos deixam de chegar às aldeias e às cidades do interior, os preços sobem e mais famílias passam dias sem ter o que comer. A seca age como um cerco alimentar, parecido com o que ocorre em zonas de conflito, como em Gaza, onde a interrupção intencional do acesso físico aos alimentos configura o uso da fome como arma de guerra.
A situação alarmante dos Yanomami, indígenas que residem no norte da Região Amazônica, relatada anteriormente, demonstra essa situação: crianças em estado crítico de desnutrição devido à falta de alimentos nas aldeias, devido à seca ou à invasão do garimpo que polui os rios e o pescado – sua principal fonte de proteínas – além de destruir seus territórios de produção de subsistência.
JOSUÉ DE CASTRO alertava, já nos anos 1950, que grãos estragados se acumulavam em armazéns do mundo desenvolvido, ao mesmo tempo em que milhões sofriam com a fome na Ásia e na África. Ele denominou essa situação de “diplomacia da fome”, o emprego da comida como instrumento de poder, uma espécie de “ajuda” internacional que marginalizava os “inimigos”, levando-os a morrer de fome de forma gradual.
O que se observa atualmente na Amazônia é um reflexo sombrio dessa acusação: comunidades inteiras sujeitas a uma espécie de bloqueio alimentar, decorrente da mistura de negligência do governo, degradação ambiental e expansão de atividades ilegais. A insegurança alimentar na região não é causada apenas pela ausência de recursos financeiros para adquirir alimentos, mas também pela limitação do acesso físico.
É nesse ponto que a mensagem de Josué encontra sua atualidade na Amazônia de hoje. Se queremos superar a fome, precisamos de políticas públicas que combinem justiça social, respeito cultural e sustentabilidade ambiental. Precisamos de um programa de ação que valorize os saberes tradicionais, fortaleça cadeias curtas de produção e transforme os povos da floresta em protagonistas da transição justa para uma economia sustentável. Não há como preservar a floresta condenando seus habitantes à miséria. Não basta distribuir cestas básicas, tem que valorizar a produção e garantir a distribuição pelos circuitos curtos locais.
As soluções estão ao nosso alcance. Projetos como o PAA e o PNAE já demonstraram que é possível unir a produção local, a inclusão social e o abastecimento saudável. Quando escolas amazônicas adquirem diretamente de agricultores familiares, crianças recebem refeições adequadas e comunidades indígenas e ribeirinhas asseguram renda.
Armazenamento regional, com estoques distribuídos e circuitos comerciais mais encurtados, pode diminuir a dependência de produtos de fora e garantir alimentos frescos durante secas. O enfrentamento do garimpo ilegal e do desmatamento, por outro lado, também é uma medida de segurança alimentar, pois protege os rios e as áreas de pastagem que sustentam as comunidades.
Em breve, Belém do Pará receberá a COP30. Pela primeira vez, a Amazônia será palco da Conferência das Nações Unidas sobre o Clima. É a oportunidade de demonstrar que não há justiça climática sem justiça alimentar. A floresta é essencial para regular o clima global, mas sua população precisa ser colocada no centro das soluções. Combater a fome na Amazônia deve ser prioridade nacional e internacional, parte inseparável da agenda do clima e dos direitos humanos.
Não é suficiente assegurar a preservação da floresta como patrimônio mundial. É preciso garantir que seus habitantes tenham comida na mesa e dignidade em suas vidas. O gráfico da insegurança alimentar na Amazônia Legal, divulgado este ano, é um alerta tão poderoso quanto o mapa que Josué desenhou em 1946. A diferença é que agora temos um maior conhecimento, melhores instrumentos e conhecemos propostas concretas para mudar essa realidade. Falta apenas coragem política, ingrediente que infelizmente falta quase sempre.
Na celebração da Amazônia e do 117º aniversário de nascimento de Juscelino Kubitschek, a mensagem central é que a floresta e seu povo são inseparáveis. Contudo, também é uma afirmação forte: não haverá um futuro climático estável enquanto milhões continuarem privados de sua alimentação adequada no coração da floresta! Não haverá Amazônia viva sem segurança alimentar para quem vive nela!
José Graziano da Silva, diretor do Instituto Fome Zero e ex-professor da Unicamp.
Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.
Fonte por: Brasil de Fato