A administração Trump, através da República Dominicana, promoveu deportações em larga escala de haitianos com atos de extrema violência
Mil haitianos são expulsos do país em jaulas, comparados a animais: “campo de concentração a céu aberto”, afirma brigadista.

Semelhante ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que emprega o discurso anti-imigração como um pilar ideológico, o governo da República Dominicana tem estigmatizado haitianos em situação irregular no país para fomentar o nacionalismo. A perseguição de natureza racista, as detenções arbitrárias e as deportações em massa são parte da rotina da Direção Geral de Migração dominicana (DGM), que, no início de agosto, afirmava manter uma média de mais de 30 mil expulsões [de haitianos] por mês.
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Em dezembro passado, foram expulsos 35.276 haitianos, que se somam aos mais de 300 mil deportados entre outubro de 2024 e julho deste ano, pelo país que compartilha com o Haiti a ilha de Hispaniola na América Central. Além dos números que ilustram o endurecimento da política migratória de Santo Domingo, o retorno forçado dessas famílias, no contexto da crise e violência no Haiti, transforma a vida dessas pessoas em uma tragédia.
“Elas não podem deixar o país e estão condenadas a viver em um ambiente de insegurança dentro dele, com grandes áreas do território sem a proteção do Estado”, declarou Augusto Silva, coordenador da Brigada de Solidariedade Internacional Dessalines (formada por militantes do MST e outras organizações da América Latina).
O “câmpus aberto” de Guantánamo, resume o brigadista, no país, há mais de dois anos, se referindo à decisão do governo Trump de revogar o status de mais de 200 mil imigrantes haitianos, que contavam com permissão de permanência temporária, conhecida como parole. Deportados em massa, tanto dos EUA como da vizinha República Dominicana, essas pessoas ficam confinadas no país, assolado pela violência de centenas de gangues.
Detalhes de maldade
A deportação não seria suficientemente negativa, o processo é conduzido de forma cruel e sensacionalista. Os migrantes são transportados até a fronteira em veículos que lembram o transporte de gado, em espécie de gaiolas.
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Denúncias de violações de direitos humanos são numerosas. Nos últimos meses, migrantes haitianos têm sido detidos nas ruas, no trabalho, na saída da escola, no hospital ou até em casa, mesmo de madrugada, e levados imediatamente até a fronteira, sem direito de defesa, sem pertences e, muitas vezes, sem poder avisar seus familiares no país.
Organizações haitianas e dominicanas alertam também sobre casos de crianças deportadas sem nenhum representante legal – foram quase 400 em junho, segundo um relatório do Grupo de Apoio aos Repatriados e Refugiados (Garr) do Haiti – e de mulheres grávidas ou, pior, saindo da cesárea e aguardadas pela polícia, à porta do hospital, para serem expulsas com filho recém-nascido no colo. Ou até sem ele.
Conforme Catia Bonté, coordenadora do Garr, os haitianos que residem e trabalham na República Dominicana encontram-se atualmente em um clima de terror. “Migraram para escapar da violência, mas, ao chegarem lá, encontraram outra forma de violência. Não é como a violência das gangues que os forçaram a fugir e incendiaram suas casas, mas é uma violência psicológica, de humilhação e discriminação pela cor da pele”, afirma.
As consequências indiretas dessas práticas são, no entanto, mais preocupantes, para aqueles que se encontram em situação irregular no país. “Mulheres grávidas, por exemplo, têm medo de ir ao hospital para parirem. Em maio, houve um caso de uma jovem haitiana de 32 anos que, por medo, preferiu fazer o parto em casa e morreu. Esse é um caso que chegou até nós, mas, certamente, tem muito mais. Até porque não são apenas as mulheres que precisam ir ao hospital.”
Outras pessoas também podem estar doentes e ter medo de procurar um médico, explica Bonté, referindo-se a um protocolo adotado em abril deste ano pelo governo dominicano que prevê a deportação imediata de qualquer estrangeiro com documentação irregular que busque atendimento, mesmo que seja em hospital público e necessite de pagamento.
Um fluxo migratório contínuo
Desde setembro de 2022, os consulados e a embaixada da República Dominicana em Porto Príncipe estão fechados, o que dificulta significativamente a obtenção de visto para um cidadão haitiano. Apesar disso, em uma fronteira oficialmente intransitável, o fluxo migratório continua, sendo entre 8 mil e 10 mil pessoas interceptadas mensalmente pela polícia ao tentar entrar no país vizinho.
Katia Bonté afirma que a migração para a República Dominicana é motivada primordialmente por razões econômicas e de segurança, levando famílias inteiras a arriscarem-se, diariamente, a cruzar a fronteira de forma ilegal. Diversas perderam suas residências, outras buscam um meio de subsistência que não encontram no Haiti, ou ainda, talvez, uma educação mais aprimorada para seus filhos, considerando que inúmeras escolas também precisaram suspender as aulas, em razão da pressão de gangues armadas.
Deste desespero, alguns obtêm lucros. Intermediários, ou coiotes, cobram até R$ 2.500 para conduzir as pessoas até o outro lado da fronteira, embora nem sempre cumpram a promessa. O Garr denuncia casos frequentes de golpes, abusos, roubos e até sequestros. Um negócio lucrativo e que se sustenta a partir da política de deportações do estado dominicano.
Um repatriado, que precisou abandonar seus bens, sua família e seus filhos na República Dominicana, só pensa, ao chegar no Haiti, em retornar. Seja para recuperar seus pertences pessoais, seja para retomar a vida no próprio país. E quem o auxilia nesse retorno é o coyotê, observa Bonté.
A origem do problema
Bonté recorda que, em relação aos recursos disponíveis para aqueles que foram expulsos, as convenções internacionais sobre questões migratórias não possuem força coercitiva. Os próprios governos do Haiti e da República Dominicana assinaram, em 1999, um protocolo bilateral sobre os mecanismos de repatriamento, que estabeleceu uma série de condições e garantias para os cidadãos de ambos os países, atualmente violadas sem qualquer punição pelo governo de Luis Abinader.
Apesar das denúncias que chegaram até a Organização das Nações Unidas (ONU), há pouca probabilidade de se obter uma solução por esse caminho.
O Garr e a Rede Hemisférica pelos Direitos dos Migrantes Haitianos (REDMA, sigla em crioulo) pressiona o governo haitiano, que possui pouca efetividade e não consegue operar em todo o território nacional. As organizações demandam que o Estado cumpra seu papel e estabeleça mecanismos de acolhimento nos quatro postos de fronteira para os cidadãos repatriados.
Na realidade, existe um Ofício Nacional da Migração, localizado em certos pontos, porém, sua atuação se restringe à contagem de indivíduos e à produção de dados, sem prover assistência de emergência, como moradia, alimentação ou cuidados com a higiene… frequentemente, ele é responsável por encaminhar as pessoas para os centros de acolhimento, segundo ironiza Catia Bonté, que ressalta que o Garr não recebe apoio financeiro do governo.
Fonte por: Brasil de Fato